Na íntegra, discurso proferido pelo ex-presidente Lula na Câmara dos Deputados (29/10/2013), ao receber a Medalha Suprema Distinção e a Medalha Assembleia Nacional Constituinte:
"É uma honra receber a Medalha Suprema Distinção, outorgada pelos representantes do povo brasileiro na Câmara dos Deputados.
É também uma grande alegria voltar ao plenário desta Casa, onde atuei por quatro anos, como deputado por São Paulo e líder do PT na Assembleia Nacional Constituinte.
A recordação daquele período, para mim inesquecível, é mais viva neste mês de outubro, quando o Brasil comemora os 25 anos da Constituição de 1988.
É com muita alegria que recebo, também hoje, a Medalha da Assembleia Nacional Constituinte.
Aquele foi um tempo em que a atividade política se exerceu no mais elevado patamar, marcando profundamente nossa compreensão do Brasil e do processo democrático.
Este plenário foi transformado em trincheira avançada das lutas sociais, acolhendo o clamor do país por liberdade, reconhecimento dos direitos humanos e justiça social.
Sob a direção segura do deputado Ulysses Guimarães, o parlamento brasileiro viveu então um de seus mais grandiosos momentos.
O Poder Legislativo, impulsionado pela diversidade democrática que o caracteriza, mostrou-se à altura das expectativas da sociedade brasileira.
E por estar em sintonia com a Nação, nunca pareceu tão clara, quanto naquele período, a importância do Legislativo – este que é o mais devassado dos Poderes, o que mais se expõe à crítica da mídia e ao juízo dos cidadãos.
Hoje vivemos situação bastante diversa. Hoje tornou-se banal criticar o Congresso e tentar desmoralizar a instituição; o que se desdobra em desqualificação da atividade política de maneira geral.
Negar as evidências desse fenômeno é impossível. Ignorar suas razões mais profundas seria um erro. Nossa obrigação é enfrentar o debate democraticamente, promovendo as mudanças necessárias.
A Câmara dos Deputados não tem por que temer esse desafio. Nos momentos mais sombrios da História, aqui estava acesa, mesmo que pálida, a chama da Democracia.
E é de aprofundar a Democracia que estamos falando.
Isso significa requalificar os partidos, reduzir a influência do poder econômico nas eleições e ampliar as formas de participação da sociedade no processo legislativo.
É uma agenda que exige a coragem de romper com a acomodação, com velhos vícios, com o receio de mudar.
A reforma política necessária para o país – e para restaurar a vitalidade do próprio Congresso – enfrentará resistências e certamente vai contrariar interesses.
Mas não vejo outra maneira de continuarmos a exercer a Política como uma atividade nobre e transformadora, da qual um cidadão possa sentir orgulho.
Senhoras e senhores deputados, amigos e amigas,
A Política entrou na minha vida como um desdobramento da atividade sindical, numa conjuntura em que a luta por salários dignos se entrelaçou com a luta pela democracia.
Desde meados da década de 1970, cresceram as manifestações por liberdades democráticas, pelo retorno ao estado de direito e pelo respeito aos direitos humanos.
A reorganização do movimento estudantil e a campanha da Anistia romperam o muro de silêncio que a ditadura havia erguido, por meio de censura, intimidação e terror.
Ao mesmo tempo fortaleceram-se as associações de bairro, as comunidades de base da igreja e outras formas de organização popular.
Nas mobilizações de 1978 a 1980, a classe trabalhadora ergueu a cabeça, desafiando a legislação anti-greves em todo o país e enfrentando a mais dura repressão.
Foi nesse contexto que nós, sindicalistas combativos de várias categorias e regiões, percebemos que não seria possível avançar em nossa luta sem participar da Política.
Para mudar as leis que produziam o arrocho salarial e impediam a livre organização dos trabalhadores, era preciso eleger nossos próprios representantes.
Percebemos que o Congresso não iria olhar para nós se não houvesse trabalhadores na Câmara e no Senado, nas Assembleias e – por que não? – à frente do Executivo.
Em 1980, as principais lideranças políticas do país, incluindo os que retornavam com a Anistia, articulavam-se para a formação de novos partidos.
Criamos o PT, reunindo sindicalistas, comunidades de base, movimentos sociais, alguns dos melhores intelectuais deste país, militantes de esquerda, dos direitos humanos, e democratas comprometidos com as lutas sociais.
Foram dois anos de trabalho árduo, conquistando militantes, constituindo núcleos e comissões provisórias, recolhendo assinaturas para obter o registro no TSE.
Cinco valorosos deputados apoiaram a criação do PT e formaram nossa primeira bancada. Em 1982, elegemos uma pequena e aguerrida representação de 8 deputados.
O PT participou da memorável campanha das Diretas-Já, com todas as forças democráticas – PMDB, PDT, militantes comunistas e socialistas, e organizações como a CUT, OAB, ABI, CNBB, UNE, MST e tantas outras.
A eleição da Assembleia Nacional Constituinte, em 1986, foi o ponto culminante do processo de redemocratização.
Ela concentrou as expectativas de mudança acumuladas em mais de uma década de intensa disputa política e social em nosso país.
O PT participou diretamente daquele momento decisivo, com uma bancada de 16 deputados, e foi o único partido a apresentar um projeto de Constituição.
O mandato na Câmara dos Deputados e na Constituinte nos proporcionou um aprendizado inestimável.
Neste plenário, convivemos com algumas das maiores expressões da sociedade brasileira.
Compreendemos que o Brasil é um país pleno de potencialidades e complexo demais para ser governado por forças políticas isoladas.
A parte mais rica desse aprendizado foi conviver com a diversidade de pensamento e com a diferença de opinião.
A experiência democrática da Constituinte foi alargada pela expressiva participação popular em seus debates.
A pressão articulada pela base deu um novo caráter à transição democrática que havia sido costurada por cima.
Assim, a construção do estado democrático foi marcada pelo reconhecimento de direitos sociais, dos trabalhadores, das mulheres, dos negros, dos índios; pela defesa do meio ambiente e contra os diversos tipos de discriminação.
Vou citar apenas um exemplo, que foi a criação do Sistema Único de Saúde. O SUS é fruto de uma grande mobilização pelo direito de universal à saúde, que foi capaz de construir maioria suprapartidária na Constituinte.
O resultado daquele processo foi uma carta avançada para o seu tempo, apesar dos limites ditados pela correlação de forças no plenário, e que permanece moderna nos dias de hoje.
O conceito de Democracia foi ampliado para além do aspecto meramente formal – a Constituição estabeleceu uma sociedade de múltiplos direitos e direitos universais que devem ser promovidos pelo Estado.
Nossa bancada votou contra o texto final, porque queríamos avançar muito mais, e assinou a Constituição, pela reponsabilidade do PT com o processo democrático.
O PT amadureceu como partido político na Constituinte. Ali consolidamos a estratégia de combinar a presença nos movimentos sociais com a luta política institucional.
Mantendo sempre um pé nas instituições e outro nas ruas, começamos ali a caminhada que nos levaria à eleição para a presidência da República em 2002.
Nosso governo procurou manter um diálogo elevado com o Congresso e com a sociedade, sem que isso jamais implicasse em desvalorizar a representação institucional.
Foi isso que nos possibilitou adotar um novo modelo de desenvolvimento com inclusão social, para o qual a Câmara e do Senado muito contribuíram, votando e, muitas vezes, aperfeiçoando as propostas necessárias a este objetivo.
A lei que instituiu o Bolsa Família, a lei do crédito consignado, a legislação que valoriza o salário mínimo, a legislação do PAC e, mais recentemente, a Lei do Pré-sal, são exemplos de diálogo político pelo bem do país.
Como todos sabem, a combinação de mais renda, mais salário e mais crédito deram nova dinâmica ao mercado interno, impulsionando produção e geração de empregos.
Esse ciclo virtuoso levou à retomada dos investimentos, para a qual o PAC foi decisivo. A Lei do Pré-sal, por sua vez, vai permitir a exploração dessa grande riqueza, em benefício do país, e sustentar a trajetória do crescimento.
Devemos acrescentar a essa lista a criação do Fundo Nacional de Habitação de Interesse social, fruto de um projeto de iniciativa popular.
O Congresso foi decisivo também na criação do Plano Nacional de Educação e, mais recentemente, a legislação do programa Mais Médicos, da presidenta Dilma Rousseff.
Nem sempre tivemos o sucesso desejado na aprovação de propostas legislativas, mas sempre mantivemos o diálogo em termos elevados.
E se o Brasil está hoje entre as maiores economias do mundo, numa situação de pleno emprego, com mobilidade social sem precedentes, estas conquistas não seriam possíveis sem a participação da Câmara dos Deputados.
Se o motivo desta homenagem é o resultado que obtivemos na presidência da República, quero compartilhar esta distinção com os deputados que contribuíram para mudar o Brasil, incluindo os que fizeram sincera oposição.
As melhores lembranças que tenho desta Casa dizem respeito ao exercício da Política na mais nobre acepção da palavra.
Recordo o plenário como um organismo vivo, atento à qualidade do discurso e sensível à força dos argumentos.
Havia, como em todo o mundo, a influência do poder econômico, das corporações e a pressão dos meios de comunicação – o que, aliás, nunca deixou de ocorrer.
Mas exercia-se o primado da Política, como atividade humana superior.
Foi a Política que me permitiu chegar à presidência da República, como representante de um projeto de mudança.
E foi a atuação política da sociedade que impulsionou o processo de desenvolvimento com inclusão.
Foi a Política, em última análise, que permitiu transformar em realidade alguns dos sonhos que sempre compartilhei com a grande maioria da população brasileira.
Em primeiro lugar, o sonho – porque para milhões não passava disso – de fazer três refeições ao dia. E com o Bolsa Família nós tiramos 36 milhões da pobreza extrema.
O sonho de ter um emprego com carteira assinada, com proteção da lei. E nós criamos 20 milhões de empregos neste país em 10 anos.
O sonho de ter o trabalho reconhecido pelo aumento da remuneração. E nesse período o salário mínimo teve aumento real de 74%, a renda das famílias cresceu 35% e a das famílias mais pobres, 66%.
O sonho de proporcionar uma vida melhor para a família, com acesso ao crédito e aos bens de consumo. E nestes 10 anos, 40 milhões de pessoas chegaram à classe média.
O sonho de ver o filho estudando numa universidade, para ter um futuro melhor. Nós dobramos as vagas nas universidades públicas e o número total de universitários do país, que hoje é de 7 milhões.
O Congresso aprovou a criação do Prouni, que abriu as portas da universidade para 1 milhão e 300 mil jovens de famílias pobres.
Aprovou também o FIES, que é o maior e melhor sistema de financiamento estudantil do mundo.
E votou a legislação das cotas sociais e para afrodescendentes no acesso ao ensino superior.
Assim, o sonho de estudar numa universidade está hoje ao alcance de qualquer jovem brasileiro – e disso muito nos orgulhamos.
Todas essas conquistas são fruto do diálogo político, envolvendo o governo, o Legislativo e a sociedade.
Por isso, não me conformo ao ver banalizada, nos dias de hoje, a desqualificação da atividade política e das instituições republicanas.
Todos os agentes políticos têm uma parcela de responsabilidade neste fenômeno.
Devemos estar conscientes de que ninguém defenderá o parlamento e os partidos, se essas instituições não fizerem por merecer o respeito da sociedade.
Isto significa aprimorar os mecanismos de transparência e controle interno. Não compactuar com o compadrio, o fisiologismo, o desvio, a confusão entre público e privado.
São obrigações republicanas básicas, das quais o agente público deve ser exemplo para o cidadão comum.
Significa também não se intimidar diante da acusação de má-fé, da manipulação dos fatos, do insulto travestido de crítica – pois seria um comportamento indigno do mandato recebido do eleitor.
Como toda instituição formada por seres humanos, o Congresso e seus representantes cometem erros. Muitas vezes são erros graves, que nem sempre são corrigidos ou punidos de maneira exemplar.
Nem é preciso abrir os jornais para encontrar notícias sobre isso – elas costumam estar nas manchetes de capa.
No entanto, é imensa a contribuição do Congresso para mudar o país, quando existe sintonia entre a instituição e a sociedade.
O Estatuto da Igualdade Racial, o Estatuto do Idoso, o reconhecimento da União Estável, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei Maria da Penha são apenas alguns exemplos de legislações que mudaram para melhor a vida das pessoas.
A lista de leis fundamentais deve crescer esta semana, com a votação do Marco Civil da Internet.
O Legislativo cresce toda vez que entra em sintonia com os anseios da sociedade.
Mas não podemos nos iludir: apesar dos grandes serviços prestados pelo Congresso, o sentimento difuso na população é de que esta casa tem mais ouvidos para o poder econômico e do que para a sociedade.
O sentido da reforma política que defendemos é aprofundar e qualificar a representatividade dos partidos e das instituições.
O parlamento e os partidos serão mais fortes na medida em que esta casa se esforçar para ser vista novamente como a Casa do Povo.
Isso exige um sistema eleitoral que mantenha o mandatário fiel aos compromissos partidários.
Exige, antes disso, partidos que tenham programas para o país, e não a multiplicidade de legendas que temos hoje.
Nada contribui tanto para desmoralizar a política do que ver partidos atuando como reles balcões de negócios, alugando prerrogativas como o tempo de propaganda e o acesso aos fundos públicos.
A influência do poder econômico e das grandes corporações no processo eleitoral é outro fator de vulnerabilidade da representação.
Por isso defendemos o financiamento público das campanhas eleitorais, que é a forma mais republicana de garantir o equilíbrio econômico na disputa política.
Essa mudança de qualidade no processo político e eleitoral requer ainda um esforço para democratizar o acesso aos meios de comunicação.
O direito à informação correta é outro requisito fundamental para o equilíbrio democrático na disputa eleitoral.
No grande debate sobre o fortalecimento do sistema representativo, quero destacar a importância da participação social no processo legislativo e na definição de políticas públicas.
Já tive oportunidade de falar sobre o papel do diálogo social na construção do nosso modelo de desenvolvimento.
O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social proporciona um elevado debate sobre os rumos do país, envolvendo empresários, trabalhadores, intelectuais e representantes de diversos setores da sociedade.
Milhões de cidadãos participaram das conferências nacionais que definiram muitas de nossas políticas para a saúde, educação, infância, meio ambiente e tantas outras.
O Poder Legislativo também sai fortalecido quando se abre à participação social. Esta é uma das qualidades da nossa Constituição, que devemos aprofundar, tornando mais simples a proposição de projetos de iniciativa popular.
Não há por que temer a contribuição direta da sociedade ao processo político, pois ela é legítima e enriquecedora.
É participando, ativamente, que a sociedade reconhecerá seu próprio rosto nas instituições.
Se há fragilidade na representação, o remédio está no fortalecimento da Política, não em sua negação.
Historicamente, a desqualificação da Política e das instituições democráticas tem servido aos tiranos, e aos que não são capazes de chegar ao poder pelo voto.
Não podemos contribuir para que isso ocorra, deixando-nos ficar no imobilismo e na vacilação. E muito menos fechando os ouvidos às legítimas vozes da sociedade.
Sempre que se renegou a Política como instrumento da mediação de interesses e da convivência social, a civilização deu vários passos atrás e nenhum adiante.
Toda vez que se calou este Parlamento, foi a sociedade que ficou amordaçada. E toda vez que esta Casa foi fechada, encarcerou-se com ela a liberdade.
Eu tenho confiança que a Câmara dos Deputados, na parte que lhe compete, responderá aos desafios de hoje com os olhos voltados para as próximas gerações.
Porque a reforma política é a mais importante de todas as reformas.
É tempo, portanto, de ouvir com a atenção a sociedade, dialogar com sinceridade, ter coragem para mudar o que deve ser mudado, e fazer Política de cabeça erguida."